Edição 163 - Aracaju, 09 de setembro a 07 de outubro de 2012

Youtube Twitter

Livros

O truque de Julian Barnes
Os limites da memória como tema de novo romance

Por Eduardo Sabino

Foto: Divulgação

Julian Barnes: peripécias a favor da boa narrativa 

 

A minha leitura de O sentido de um fim, de Julian Barnes – ou boa parte dela – deu-se no mesmo dia em que revi O grande truque, de Christopher Nolan. Talvez por uma organização mental inconsciente, uma simbiose improvável de referências, acabei usando uma obra para pensar a outra. O filme de Nolan é baseado também em um romance do autor inglês Christopher Priest, escritor de ficção científica e, talvez por isso mesmo, pouco conhecido por aqui. Não li o livro precursor do filme, desconheço as habilidades formais do autor – ou a falta delas – mas como os elementos que me ajudaram a refletir sobre a literatura, em especial sobre a obra de Barnes, são evidentes no enredo do filme e na composição narrativa intrincada de Nolan, tomo a liberdade de riscar paralelos entre o filme de Nolan e o romance de Barnes, mesmo ciente do abismo de linguagem entre a prosa romanesca e a obra cinematográfica.

O filme mostra a disputa violenta e crescente entre os mágicos Robert Angier (Hugh Jackman) e Alfred Borden (Christian Bale), ambos em busca de um truque perfeito, capaz de deixar o público desnorteado. Robert é medíocre e esforçado. Alfred, talentoso e obsessivo. A história se apoia na visão de Alfred sobre a mágica, que acredita na necessidade do sacrifício completo para a realização de um grande truque. Artista apaixonado, ele está disposto, se necessário, a sacrificar o equilíbrio da vida pessoal pelo sucesso de suas ficções.

Em termos de enredo, só com muito esforço acharíamos pontos comuns entre O grande truque e O sentido de um fim. A interseção vem dos conceitos que sustentam a narrativa. O filme de Nolan é também um truque bem realizado, que segue à risca os princípios dos personagens, e os leitores de romances, assim como os espectadores dos mágicos, desejam ser enganados. Se o truque não passa realismo – o “real” aqui no contexto da obra, no sentido de verossimilhança – o receptor se decepciona com a frouxidão da mágica.

O truque bem executado oferece aos espectadores algum tipo de mudança imprevista, o desaparecimento de uma coisa, o surgimento de outra, a transformação de um objeto inanimado em pombas e borboletas. O desvio da linha lógica proporcionado pelo truque tem o objetivo de surpreender. Em literatura, chamamos isso de peripécia. O recurso serve como “golpe final” a muitos ficcionistas, inclusive a Julian Barnes em seu novo livro.

Alteração de percurso

Talvez o truque do desvio seja bem comum nas narrativas de mistério e encontre um habitat ideal nas histórias de detetive. São enredos, em geral, em que há acumulação de provas, suposições e detalhes sobre um fato obscuro, mas que têm seu clímax justamente quando apontam em direções não aprofundadas pelas pistas. Boa parte dos truques do gênero talvez não surpreendam leitores experientes, cansados de trombar com assassinos de dupla personalidade e mordomos dissimulados. Mas a peripécia pode ainda ter grandes efeitos em situações menos clichês e nas mãos de ficcionistas habilidosos.

Muitos contos e romances aclamados pela crítica já se deixaram levar pelo impacto da peripécia. Para citar exemplos recentes na literatura brasileira, Diário da Queda, de Michel Laub, e Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. Ambos usaram o recurso no desfecho das obras, apresentando novidades que lançaram luzes sobre os personagens e reconfiguraram o sentido da trama.

Para que a peripécia dê certo, o autor possivelmente pensou começos e meandros em razão do truque final ou os reescreveu quando atinou para a possibilidade de surpreender o leitor. Quando a peripécia gera sentido sem comprometer a lógica do universo da obra, os efeitos do truque se estendem para além da leitura e costumam reforçar a sensação de que lemos um grande livro. Tal como o truque dos mágicos de Nolan, precisamos ter cuidado nesse diagnóstico final e tentar distinguir se aquilo é o efeito de um bom livro ou a ilusão da mágica: o brilho de um momento isolado. Um bom final não basta. Vejo nos grandes romances a sintonia de vários elementos, principalmente a existência de uma linguagem e uma estrutura que deem conta de gerar interesse. Como a própria vida em que sem algum interesse não atravessamos uma rua, na literatura, acredito, somos incapazes de virar uma página sequer.

Sentidos para um fim

No início de O grande truque, o personagem de Michael Caine, tutor dos mágicos, apresenta os atos de um truque. A primeira parte é “a promessa”. O mágico mostra um fato, às vezes algo banal, um objeto em torno do qual a mágica acontecerá. A coisa aparece como um objeto comum, mas, na verdade, e disso só o mágico sabe, não é, trata-se de algo com dimensões mais complexas, um alçapão coberto por um tapete. O segundo ato, Caine continua a explicar, chama-se “a virada”. Nas palavras dele, “o mágico pega um objeto comum e o transforma em algo extraordinário”.

O objeto de O sentido de um fim é o suicídio de Adrian Finn, um jovem brilhante, morto aos 22 anos. O narrador, Tony Webster, aposentado e de vida tranquila, investiga o passado do outro lado de um longo buraco de minhoca, valendo-se das cenas ainda latentes na memória. Adrian foi o último elemento a se integrar ao quarteto do qual Tony fazia parte, um grupo de jovens que gostavam de ser vistos como desajustados e transgressores, mas não escapavam de levar uma vida típica de alunos do colegial às voltas com as descobertas da adolescência.

O narrador descreve os fatos em linguagem simples, sem se ater a descrições longas, sem muitos detalhes sobre os espaços geográficos onde se dão as ações. Um estilo, por sinal, bem coerente com as limitações da memória. Pontuam o texto trechos de caráter ensaístico, quando o narrador tenta compreender a visão de mundo que tinha no passado e deixa à mostra suas frustrações atuais:

Naquela época, nos imaginávamos presos numa espécie de gaiola, esperando para sermos soltos na vida. E quando esse momento chegasse, as nossas vidas – e o próprio tempo – iriam se acelerar. Como poderíamos saber que nossas vidas já tinham começado, que algum benefício já havia sido obtido, algum dano já havia sido causado? E, também, que seríamos soltos numa gaiola apenas maior, cujas fronteiras a princípio seriam imperceptíveis.

Da escola, Tony se concentra em lembrar apenas as aulas de História e as discussões da turma, em especial as de Adrian, com o professor. As cenas reforçam a inteligência do amigo e dão ao leitor algumas pistas sobre o próprio romance, que pode estar vinculado a um dos conceitos de história discutidos: “a verdade dos poderosos”, “a ilusão dos derrotados”, ou, para Adrian, “a certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”.

Quando Adrian se mata, os jovens se surpreendem, mas se deixam seduzir pela ideia de o ato ter sido uma demonstração de coragem intelectual. Adrian poderia ter levado às últimas consequências a vontade de estar no controle da vida.

O momento da virada, o fato que faz Tony se voltar para o passado e transformá-lo, é o recebimento de uma herança que vai lhe colocar em contato com uma ex-namorada, Verônica, que também namorou Adrian pouco antes do suicídio. Na herança, deixada por alguém com quem Tony pouco conviveu, a mãe de Verônica, uma carta informa que seria entregue a Tony uma modesta quantia em dinheiro e o diário de Adrian. Verônica, no entanto, impediu o diário de chegar ao novo proprietário, e o romance passa a girar em torno da busca pela herança e tudo o que isso representa – a reaproximação com Verônica, a volta ao passado, uma possibilidade de entender melhor os motivos de Adrian.

Mesmo descrevendo os acontecimentos definitivos de forma linear, o livro tem uma estrutura circular, revisitando, com frequência, cenas marcantes da juventude de Webster. Seja um final de semana ruim na casa de Verônica, em que ele se sentiu maltratado pela família dela, ou a noite em que ele acompanhou, em companhia de um grupo de jovens entusiasmados, o fenômeno de um rio correndo na direção contrária, símbolo perfeito do conflito de Tony, atraído constantemente para o passado.

O terceiro ato de O sentido de um fim, the prestige, ou “o grande truque”, consiste numa bela peripécia, que surpreende os leitores mais atentos. A artimanha é sutil e bem construída. Em semelhança aos melhores exemplos do tipo, os detalhes adquirem dimensões monstruosas. A mágica não se sustenta sozinha, mas, no romance de Barnes, soa como o impacto final de um grande livro. E convence. 

 

Eduardo Sabino é escritor e jornalista. Contribui regularmente com revistas literárias, jornalísticas e científicas. Contato: [email protected].