Edição 163 - Aracaju, 09 de setembro a 07 de outubro de 2012

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Entrevista

A longa balada de Bob Dylan
Nova biografia revisita a trajetória de um dos maiores artistas do século 20

Por Paulo Lima

Foto: Divulgação
 
Bob Dylan em 1963, ano de seu concerto no Lisner Auditorium

 

O poeta, biógrafo e dramaturgo americano Daniel Mark Epstein teve a chance com a qual muitos fãs de Bob Dylan sonhariam. Ele assistiu a quatro concertos do artista ao longo dos últimos 50 anos. No primeiro concerto, que teve lugar no Lisner Auditorium, em Washington, Epstein tinha 15 anos de idade. Era o ano de 1963. Dylan, com 22 anos de idade, estava no começo de uma carreira que o transformaria num dos maiores artistas do século 20. Assim Epstein descreve o que viu, sentado nas primeiras fileiras, a alguns metros do palco:

“O jovem de aparência frágil e cabelos castanhos desgrenhados entrou no auditório pelo lado esquerdo do palco, arranhando seu violão enquanto as pessoas ainda se acomodavam em seus assentos.” Dylan, então, “caminhou em direção ao centro do palco, perto de um banco alto de madeira. No assento do banco havia um amontoado de brilhantes gaitas Marine Band. Mal agradecendo aos aplausos e levemente constrangido por eles, deu uma guinada até seu lugar usando um suporte de ferro para gaita ao redor do pescoço – que o fazia parecer uma criatura selvagem com arreios -, piscando sob os holofotes, arqueando os ombros para ajustar a alça que segurava o violão Gibson Special em seu corpo esguio.”

Epstein havia ido ao concerto na companhia de sua mãe, sua irmã de 13 anos e um amigo. Naquele dia, um episódio pitoresco o aproximou de Dylan pela primeira e última vez. Ao final do show, a menina se perdeu em meio ao grupo de menos de 100 pessoas que se aglomerou na saída do recinto à espera do artista. Sua mãe começou a procurá-la e a chamar seu nome, nervosamente. Depois de algum tempo de ansiedade, uma vez se fez ouvir acima do burburinho. “Senhora, eu estou com ela”. Era Dylan, ao lado da menina, que o havia procurado para pedir um autógrafo.

As demais apresentações a que Epstein assistiu transcorreram num espaçado vão de tempo, dando-lhe a oportunidade de conferir as transformações vividas por seu biografado em sua longa carreira. Ele esteve no show do Madison Square Garden, Nova York, em 1974; em Tanglewood, Massachusetts, 1997; e em Aberdeen, Maryland, em 2009. No concerto de Tanglewood, Epstein estava acompanhado do filho de 15 anos, o qual preparou conscienciosamente com uma audição prévia de discos de Dylan. 

Os quatro concertos estabelecem o eixo narrativo do livro A balada de Bob Dylan – um retrato musical, recém-lançado pela editora Zahar, no qual Daniel Mark Epstein (foto ao lado) conta a história artística e pessoal de Bob Dylan. É quase impossível não indagar: mais um livro sobre Dylan? Mas o que há de novo a ser dito? Vencendo essa desconfiança inicial, acabamos por mergulhar nessa biografia como se movidos pelo ímpeto de querer pegar uma carona na experiência do autor para também “estar lá”, em cada show. Não que faltem livros sobre Dylan esmiuçando suas inumeráveis performances no palco - e nos bastidores. É exatamente o contrário. Nem é preciso ser dylanólogo para se dar conta da torrente bibliográfica existente sobre o bardo, cuja carreira e estilo de vida foram esquadrinhados sob todos os ângulos possíveis. Basta fazer uma busca, por exemplo, na Amazon Books.

Só no Brasil, em anos recentes, aterrissaram duas obras a respeito de Dylan, sendo que uma delas, No direction home – a vida e a obra de Bob Dylan, escrita por Robert Shelton, considerado o biógrafo oficial do artista, tem cerca de 800 páginas. O outro livro é Dylan, a biografia, do jornalista Howard Sounes, que pode ser inserido na rubrica das inúmeras biografias não autorizadas pelo esquivo biografado.

Mas o livro de Epstein nos captura de modo especial, com sua combinação de boa reportagem, crítica musical e testemunho de fã devotado, todos esses aspectos amarrados pela força de seu texto poético. OK, ele admite que caiu fora na fase gospel do cantor, como aliás boa parte dos fãs de Bob Dylan, desapontados com seu fundamentalismo religioso. Contudo, as infidelidades artísticas do menestrel e as obras-primas que ele viria a produzir a partir de fins da década de 90, como Modern Times, reconduziram Epstein à sua legião de admiradores. 

Epstein é escritor premiado, com uma vasta produção como poeta e dramaturgo, tendo escrito também algumas biografias (como as de Lincoln e de Walt Whitman). Com seus amplos recursos e com uma sensibilidade muitos níveis acima da média dos fãs do cantor, ele faz uma deliciosa crônica de inúmeras canções de Dylan, abrindo novas percepções para elas, mesmo aquelas sobejamente analisadas.

A rigor, o livro não traz informações novas sobre seu lendário personagem, mas oferece, em cerca de 500 páginas, uma ampla perspectiva de seu percurso camaleônico, em vez de privilegiar apenas um ou outro aspecto. Sim, está tudo lá: a infância de Dylan em Hibbing, Minnesota; suas primeiras aventuras musicais; sua chegada a Nova York; sua ascensão na cena folk; sua vida amorosa e familiar; suas súbitas guinadas, transgressões, ocasos artísticos e triunfantes renascimentos. Como escreveu Eduardo Bueno na apresentação do livro, “você julga estar lendo aquele conto surrado não pela enésima, mas pela primeiríssima vez”. Bingo! Além disso, o livro de Epstein atualiza a narrativa sobre Dylan, incorporando episódios recentes de sua vida e sua arte, o que estabelece uma vantagem, por assim dizer, sobre os outros livros citados. O relato de Robert Shelton se encerra em 1985 (ele morreu em 1995). E a pesquisa de Howard Sounes vai até o ano 2000. Mas muitas pedras iriam rolar e muitos ventos iriam soprar na carreira de Dylan, nos anos subsequentes.

O fato de ser contemporâneo de Dylan e acompanhar sua obra a partir de um púlpito privilegiado sem dúvida credencia Daniel Mark Epstein a afirmar, com imodéstia: “Nenhum outro biógrafo o compreendeu tão bem quanto eu”. Essa convicção foi o que o levou a enfrentar um projeto tão ambicioso, depois que tantos já o haviam realizado.

O livro de Epstein mostra a trajetória de um artista em atividade incessante, mesmo em suas fases de reclusão voluntária, tendo produzido algumas obras-primas ao longo da última década, prova inconteste de que segue questionando seu tempo, extraindo desse crivo beleza e sabedoria na forma de canções, transcendendo assim o mero rótulo de “artista dos anos 60”. Quem imaginaria que aquele jovem cantor de 1963 iria tão longe? “Ninguém imaginaria, ele nos surpreendeu a todos”, disse Daniel Mark Epstein na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

***

Existem muitos livros sobre Bob Dylan. Por que o senhor decidiu escrever mais um?

Dylan talvez seja o artista mais fascinante do século 20. O fato de que muitos outros escritores o analisaram aumentou meu interesse em escrever um livro sobre Dylan, por que senti que nenhum outro biógrafo o compreendeu tão bem quanto eu. Como cantor folk, poeta e contemporâneo de Dylan, me senti capaz de escrever um relato bem informado sobre sua vida baseado na experiência de testemunha ocular. Ninguém mais, especialmente no futuro, poderá escrever um livro como eu escrevi.

O livro se concentra em quarto grandes concertos de Dylan, aos quais o senhor teve a oportunidade de assistir. Para o senhor, qual foi o mais importante? Por quê?

O concerto mais memorável foi o primeiro que testemunhei, no outono de 1963. Eu era jovem e impressionável. Dylan era relativamente desconhecido, desprotegido e estourando com seu talento. Em toda sua carreira, Dylan não deu mais do que 50 concertos solo. Esses concertos criaram um padrão a partir do qual toda a sua arte de se apresentar é medida. Tive o privilégio de ver um dos primeiros, o mais bonito.

O senhor teve a oportunidade de conhecer Dylan pessoalmente em 1963, e nunca mais o encontrou. Que pergunta faria a ele, se voltasse a encontrá-lo hoje?

Eu perguntaria a ele com qual de suas realizações, entre as pessoais e as profissionais, ele mais gostaria de ser lembrado.

O senhor é poeta. Qual letra de Dylan gostaria de ter escrito. Por quê?

Essa é uma pergunta maravilhosa, porque não há elogio maior que um poeta pode fazer a outro senão dizer que gostaria de ter escrito seus versos. Eu gostaria de ter escrito "Hard Rain's A-gonna Fall", "Boots of Spanish Leather," "Not Dark Yet" e "Mississippi," entre outras.

A maior parte do que se escreveu sobre Dylan se concentra em suas letras poderosas, mas ele também é um grande melodista. Como o senhor analisa esse aspecto de sua arte?

Dylan seria o primeiro a admitir que não é um grande melodista. Ele escreveu algumas boas melodias, como "Mr. Tambourine Man," "Forever Young," "I'll Be Your Baby Tonight," e varias canções do álbum John Wesley Harding. Mas em geral ele tem retrabalhado, com gratidão, velhas melodias, hinos americanos, velhas baladas folclóricas inglesas, inclusive baladas populares americanas. Ele é um colecionador da tradição americana, um acumulador.

Muitos críticos afirmam que o sucesso de Dylan é uma combinação de talento com a sorte de estar entre as pessoas certas, nos momentos certos. O senhor acha que a historia dele podia ter sido diferente se ele não tivesse conhecido pessoas como Albert Grossman?

Eu acho que a sorte de Dylan é ter nascido com habilidades naturais prodigiosas, incluindo um ótimo ouvido, saúde robusta, uma rica imaginação poética e uma forte ética do trabalho. Ele fez sua própria sorte. Em termos de conhecer pessoas, todos queriam estar com Dylan desde o início. Se Albert Grossman e Joan Baez não o tivessem ajudado em sua carreira, outras pessoas o teriam feito.

Dylan escreveu um número incrível de canções. É possível escolher sua canção favorita? Por que a escolheria?

Essa é uma questão realmente difícil. Mencionei que gostaria de ter escrito algumas canções, e elas estão entre minhas favoritas. Admiro muito as canções de Dylan que conseguiram grande eloquência e profundidade de significado, criando um espaço dramático: “Boots of Spanish Leather”, na qual dois amantes conversam, ou “Not dark yet”, em que um velho conta suas horas finais.

O senhor imaginava que aquele jovem Dylan que se apresentou no Lisner Auditorium, em 1963, iria tão longe?

Ninguém imaginaria. Lembro que as pessoas que descobriram Bob Dylan no início dos anos 60 sentiam unanimemente que ele era bom demais para ser verdade, que não seria possível para um cantor puro e vulnerável sobreviver ao mundo cruel dos anos 60. Ele surpreendeu a todos.

Se o senhor fosse descrever o artista Bob Dylan numa frase, qual seria?

Bob Dylan tornou-se uma parte essencial de nosso caráter.